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Desde o início do ano, o governo Lula se encontra num verdadeiro impasse. Para debater os rumos da regulamentação do trabalho por plataformas digitais, quem será o representante dos interesses dos trabalhadores?
Quando as principais empresas de plataformas digitais difundiram seus serviços no Brasil, há cerca de dez anos, não houve nenhuma aprovação legislativa com relação à regulamentação das jornadas flexíveis e informais que seriam realizadas por milhares de trabalhadores brasileiros, apenas a aprovação, em 2018, do funcionamento do serviço dessas empresas — que são, em sua maioria, multinacionais milionárias.
Aquele contexto era muito diferente do atual, pois além dos índices e dos efeitos do desemprego e da miséria serem menores do que os atuais — como sabemos, eles seriam posteriormente agravados pelas respostas neoliberais às crises econômica e sanitária da Covid-19 —, o número de trabalhadores e clientes cadastrados nas diferentes plataformas digitais era inferior, assim como a própria variedade dos serviços e das empresas.
A título de exemplo, a Uber — principal empresa de transporte de passageiros por meio de aplicativos digitais em âmbito nacional e internacional — chegou ao Brasil em 2014, no Rio de Janeiro, durante a Copa do Mundo. Rapidamente seus serviços se espalharam pelo território nacional, fazendo com que a empresa estivesse presente, segundo dados de 2021, em mais de 500 municípios brasileiros, em todas as regiões do país — o que corresponde a cerca de 5% de todos os territórios em que atua globalmente.
No início, havia a promessa de que o trabalho por plataformas digitais daria respostas ao desemprego, permitindo aos trabalhadores terem bons rendimentos em jornadas flexíveis. Aos poucos, a realidade foi mostrando que, para ter bons rendimentos, os trabalhadores seriam expostos a diversos riscos e imprevisibilidades durante suas jornadas de trabalho, e que a flexibilidade seria, na realidade, a ausência de qualquer proteção social e trabalhista.
Foram diversas as manifestações e greves organizadas pelos trabalhadores por plataformas digitais reivindicando melhores condições de trabalho e aumento de seus rendimentos. As que mais se destacaram são aquelas realizadas por entregadores e motoristas por aplicativos, sendo os Breques dos Apps, realizados pelos entregadores em 2020, as de maior expressão.
Mesmo com ações coletivas massivas, nas ruas e nas redes, expondo as pautas da categoria aos clientes e às instituições públicas, o cenário continuou desfavorável aos trabalhadores: as empresas realizaram pequenos ajustes em suas formas de operação, que não acarretaram uma melhoria significativa nas condições de trabalho, nem promoveram o aumento das tarifas pagas aos trabalhadores.
O debate sobre a regulamentação profissional e o reconhecimento do vínculo de emprego sempre esteve secundarizado nessas manifestações que, embora reivindiquem pautas que são direitos já consolidados em nossa legislação — a exemplo das férias, do 13º salário, dentre outros —, não expressam o interesse dos trabalhadores em ingressar no regime formal, previsto na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Em paralelo a isso, os governos neoliberais de Michel Temer (MDB) e, sobretudo, de Jair Bolsonaro (PL), não demonstraram nenhuma disposição em dialogar com esses trabalhadores e, tampouco, em dar respostas às suas reivindicações.
Com a vitória eleitoral de Lula da Silva (PT), em outubro de 2022, o movimento dos entregadores por aplicativos reconheceu uma oportunidade para avançar no debate sobre os direitos da categoria. Cumpre destacar que o próprio Lula, durante a campanha eleitoral, já sinalizava o interesse de atender às demandas dos trabalhadores por plataformas digitais, dando respostas às lastimáveis condições de precariedade na qual estão submetidos.
Com a expectativa de incidir neste debate, reunindo diversas associações e coletivos de trabalhadores, em dezembro de 2022 foi constituída a Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativos (ANEA), que organizou uma greve para 25 de janeiro de 2023 a fim de pressionar o governo com relação às pautas da categoria.
A ameaça de greve, logo nas primeiras semanas do governo, fez com que o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), na figura do secretário de Economia Solidária, Gilberto Carvalho (PT), chamasse as representações do movimento para uma reunião.
Ocorrida em 17 de janeiro, a reunião da ANEA com representantes do governo teve como objetivo apresentar as atuais condições de trabalho e as demandas da categoria, bem como as possíveis alternativas para garantir o acesso a direitos sociais e trabalhistas. Na mesma semana, em 19 de janeiro, o governo realizou outra reunião para debater o trabalho por plataformas digitais, desta vez com representantes empresariais e dirigentes de sindicatos e das maiores centrais sindicais brasileiras. Com as três partes presentes nesta ocasião, foi iniciado o processo de uma mesa nacional de negociação.
Os representantes da ANEA foram convidados extraoficialmente para esta reunião — segundo informações, por meio de dirigentes de uma das centrais sindicais. Houve o encaminhamento de um novo encontro para o mês de março, que não ocorreu, e, desde então, a categoria segue sem nenhuma novidade com relação à sua regulamentação, assim como a ANEA permanece em escanteio no debate acerca da regulamentação do trabalho por plataformas digitais no Brasil.
Em uma carta assinada em 12 de fevereiro, a ANEA aponta a necessidade de se construir uma proposta de intervenção legislativa para proteger os direitos dos trabalhadores por plataformas digitais, se coloca como representante política interessada no tema, e elenca um eixo com 12 propostas para o governo, sendo eles:
- formalização da relação de trabalho;
- acesso à previdência social; garantias de remuneração;
- definição de jornada de trabalho e descanso semanal;
- responsabilidade das empresas pelos custos e equipamentos de trabalho;
- seguro de acidentes de trabalho;
- auxílio-doença e auxílio-acidente;
- garantias contra desligamentos abusivos;
- melhores condições de trabalho e acesso a serviços de apoio;
- liberdade de associação e sindical;
- e direito à informação e transparência do algoritmo.
Importante destacar que as pautas elencadas pela ANEA em seu programa ultrapassam a própria categoria dos entregadores por aplicativos. Elas também conseguem abarcar os motoristas por aplicativos e todas as outras categorias subordinadas às plataformas digitais.
Desde as reuniões de janeiro, porém, o governo Lula entrou num verdadeiro impasse. Quem será o representante dos interesses dos trabalhadores no debate sobre os rumos do trabalho por plataformas digitais no Brasil? As centrais sindicais e os sindicatos oficiais que atuam em setores afins — como é o caso dos sindicatos de motofretistas em relação aos entregadores por aplicativos —, ou as organizações próprias da categoria que, embora não sejam sindicatos formais, e nem se reivindiquem politicamente como sindicatos, surgiram para dar respostas aos interesses desses trabalhadores?
A ANEA é constituída por representações de diversos estados, que atuam em organizações presentes no cotidiano dos entregadores por aplicativos. Ela tem uma proximidade com os trabalhadores que nenhuma outra organização ou sindicato tem. A Aliança demonstrou capacidade política de articular uma greve nacional da categoria e de se fazer ouvida, além de ter o interesse em elaborar um programa com reivindicações dos trabalhadores.
No centro do seu programa está o acesso dos trabalhadores por plataformas digitais a direitos já constituídos em nosso país — uma tarefa que até agora não foi assumida publicamente por nenhuma central sindical ou sindicato oficial e que ainda é polêmica entre os próprios trabalhadores.
A presença da ANEA nas negociações, não atrás, mas ao lado dos sindicatos formais e das centrais sindicais, é legítima e pode tensionar o debate para as especificidades da categoria, dando complexidade aos questionamentos e respostas com relação à necessária formalização do trabalho subordinado às plataformas digitais, e contribuindo para encontrar a melhor saída para este problema.
Eduardo Rezende Pereira é mestre e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (PPGCP/IFCH/Unicamp) e pesquisa sobre precarização social do trabalho e organização sindical de trabalhadores tipicamente precarizados.